segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O ESCRITOR PEDRO VICENTE SOBRINHO MANDA-ME DUAS BELAS RESENHAS DE UM DOS ACREANOS QUE MAIS ADMIROU JUVENAL ANTUNES.

JUVENAL ANTUNES DE OLIVEIRA
ARMANDO NOGUEIRA -ACRE

AULA DE ARITMÉTICA
Armando Nogueira

Férias. Quem nunca tirou não sabe como é bom. Quinze dias de contemplação, manso sinônimo de preguiça. Conheci um poeta chamado Juvenal Antunes. Minha conterrânea Glória Perez sabe de quem estou falando. O poeta Thiago de Mello, também sabe. Juvenal passava o dia a recitar versos, quase sempre, cantando a beleza de Laura, a musa inspiradora de sua aventura poética. A voz esganiçada ressoava pelos barrancos do rio Acre: "... Perdoa, Laura, o meu atrevimento/ Lê esta carta, rasga e solta ao vento!"
Sem a lira de Juvenal Antunes, eu não teria saco pra enfrentar a cara de fuinha do professor Ernani. A aula de aritmética do professor Ernani era o grande suplício de minhas manhãs. Menos mal que minha vizinha de carteira era a morena Isabel, em cujos cabelos longos, lisos e lustrosos eu me refugiava da chatice elevada ao quadrado do professor Ernani. Que Deus o tenha!
Nas curtas férias que acabo de gozar, evitei sempre conversas de esporte. Não dava nem pra ouvir falar de futebol. Estava cheio de ver tanta bola no ano de 2001. Cheguei a pensar em sair de bigode postiço e peruca. É natural: neguinho te vê, se lembra da televisão e quer logo saber se o Juninho vai dar certo no Flamengo.
Quando pousei em Parati, outro dia, o guarda-campo me perguntou do Felipão. Respondi que não era quem ele estava pensando. Somos muito parecidos. Há até quem diga que somo gêmeos. Na verdade, nem nos conhecemos. Disse que me chamo Almir, que sou botânico de profissão. E fui logo engrenando uma segunda: meu ramo é outro. Cuido de flores. Vendo mudas de buganvília, exporto bromélias pra Europa e orquídeas pros Estados Unidos. O mais engraçado, digo eu, é que somos iguais fisionomicamente, mas muito diferentes em questão de gosto: eu não ligo a mínima pra futebol.
Na curtição da minha honrada vagabundagem, volta e meia, eu me lembrava do poeta boêmio que escandalizava a cidade de Rio Branco, com seu robe-de-chambre de florões e seus pileques de gin com vermute, a declamar poemas na porta do hotel Madrid. Juvenal Antunes era Promotor Público, mas nunca aparecia no trabalho. Tinha tanto horror ao Fórum quanto eu ao colégio. Acabamos tendo outra afinidade: eu também fiquei apaixonado pela doce Laura que nunca fiquei sabendo quem fosse. Com uma pequena diferença de sorte: o que seria o meu primeiro ardor amoroso, puro devaneio, seria o derradeiro de Juvenal Antunes. Ele morreria pouco tempo depois, de melancolia.
Em Juvenal Antunes, descobri a cadência musical de um verso decassílabo: "Em tudo, me dás vida e me engrandeces/ E te vejo mais linda a cada passo." Com ele, aprendi, ainda, a preciosa lição de que, seja qual for o destino à tua frente, uma aula de aritmética, um caso de amor mal parado, haverá, sempre, um sopro de poesia pra apaziguar teu coração.
Nesta primeira crônica de volta ao trabalho, repito, em louvor das férias findas, os versos que Juvenal Antunes recitava, como se fosse pra mim, quando eu, desconsolado, ia pra mais uma aula de aritmética: "Bendita sejas tu, Preguiça amada/ E não consintas que eu me ocupe em nada."



O REENCONTRO DA INFÂNCIA
Armando Nogueira

O sol nasce pra todos, diz o provérbio. Não é uma verdade irrefutável, mas todos fazemos de conta que é. Não custa nada a criatura - acordar, cada dia, com a esperança de que vai chover na sua horta.
Na hora de fazer o balanço do ano - que passou, a voz mais ouvida é a do alivio: 2003 já foi tarde! Poucos rendem ao tempo recém-findo uma palavra de gratidão pelas coisas que poderiam ter sido e que acabaram sendo.
No meu caso pessoal, não me lembro de outro ano mais generoso na minha vida adulta. Não ganhei no bicho, sequer tentei a mega-sena, não cai nas graças de ninguém. Só não diria que passei em brancas nuvens porque a imagem não faria justiça ao doce enlevo de tantos vôos, meu aviãozinho e eu, a triscar estratos de algodão pelo céu de tantas rotas.
Foi um ano de reencontro. Viajei ao Acre, minha terra querida. Revi - a gameleira secular em cuja sombra afetuosa transcorreu a parte melhor de minha infância.
Um dia, eu era o próprio Leônidas, o "homem de borracha" fazendo gol atrás de gol, na Copa de 58. Só não fazia gol de bicicleta pra ninguém achar que estava exagerando. No dia seguinte, eu trocava de pele. Vestia a túnica de general ateniense e, sob o mesmo nome de Leônidas, estava derrotando o exército persa, nas batalhas do desfiladeiro das Termópilas. Passei horas de uma madrugada, em Rio Branco, a relembrar a voz gasguita do poeta Juvenal Antunes, na frente do Hotel Madrid, declamando, aos berros, seus poemas de amor: "Perdoa, Laura, o meu atevimento/Lê esta carta, rasga e solta ao vento."
Tinha eu, se tanto, dez anos de idade. Matava aula pra ficar ouvindo o canto de um poeta enfeitiçado, a quem devo a descoberta de duas paixões. Venerei Laura em cada verso que o bardo recitava à beira do rio Acre. Amor sem corpo, abstração de um poeta de água doce.
A segunda descoberta foi o meu súbito amor pela palavra. Juvenal Antunes apurou meu ouvido pra magia da palavra. Ele alternava cânticos de êxtase e de irreverências: "Bendita sejas tu, preguiça amada/Que não consentes que eu me ocupe em nada."
Aprendi com ele que a preguiça é um nobre sentimento que habita o coração dos poetas. Preguiça, teu verdadeiro nome é contemplação.
Na viagem que fiz ao Acre, fiquei amigo do governador Jorge Vianna, um moço que está fazendo na minha terra uma revolução sem armas. Sublimação da epopéia acreana em que uma geração de seringueiros anônimos morreu na floresta pela cívica teimosia de ser cidadão brasileiro. Não é uma simples retórica de poeta o verso do hino acreano: "Fulge um astro na nossa bandeira/que foi tinto com sangue de herois." Correu sangue, de fato, nos combates de ferro e fogo contra o exército regular da Bolívia.
O neologismo florestania, em lugar de cidadania, é uma bolação de Jorge Vianna, inspirada, certamente, nos ideais de Chico Mendes, cujo martírio converteu-se em bandeira da floresta.
Visitei Xapuri, cidade em que nasci. Reencontrei, confluentes, em doce comunhão, os rios Acre e Xapuri, cúmplices ambos de um remoto devaneio que os anos acabam de me trazer de volta, íntegros. Águas silenciosas que nunca choraram por mim. Nelas, nada mudou. A fluidez é a mesma; mesmo é o remanso, em cujo vagaroso rodeio, até hoje, voltejam as minhas essências.
Louvado seja 2003, o ano que me devolveu a minha infância


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