THIAGO DE MELLO E EU
Franklin Jorge
www.osantooficio.com
Em minha adolescência inquieta e fatigada, sua poesia - que se confundia com a sua própria vida, pelo que sabíamos maravilhosamente repleta de aventuras -, me fez mergulhar em dimensões estranhas e magníficas do mito e do sonho, levando-me a pensar que também poderia me opor às injustiças e defender humilhados e ofendidos, escrevendo altruisticamente em versos.
Nunca pensei, porém, que algum dia nos conheceríamos e nos tornaríamos, se ouso declarar sem presunção, amigos, pois ninguém mais vocacionado para o exercício da amizade do que esse grande patriarca das letras amazônicas. Mais ainda, que eu viria a escrever numa mesa de peroba rosa, especialmente desenhada por Thiago de Mello, como um presente de aniversário dos meus quarenta anos...
Estávamos ambos, naquele remoto ano de 1992, em Rio Branco. Thiago, de passagem, para participar da entrega do “Prêmio Juvenal Antunes” e participar da inauguração de uma escola municipal em homenagem ao poeta do Ceará-Mirim, meu conterrâneo, recentemente achacado pelas mãos globais de Glória Perez num seriado feito com o visível propósito de faturar e colocar em evidência o nome do seu pai, que, de outra forma, continuaria um autor anônimo... Eu, trabalhando, mais precisamente dirigindo o “Complexo O Rio Branco de Comunicação”, onde empreendera o ambicioso projeto de, através de um novo direcionamento do jornalismo impresso e televisivo, “redescobrir o Acre... para os acreanos”. Foi o que fizemos, com um tal êxito, que muitos daqueles bairristas passaram a pensar que eu nascera também no Acre.
Um gigante, no físico, Thiago chama a si mesmo de “Caboclo”, o Caboclo Thiago, como outros amazônidas, de pele “cor de cuia” e cabelo encrespado já ficando inteiramente grisalho, um extraordinário ser humano, inteiramente despojado de todo o desejo de posse, pois o seu reino não é deste mundo...
Muito conversador – pois a conversação, como já tive a oportunidade de dizer noutra ocasião, parece-me ser a síntese de seus variados dons --, assim me lembro do autor de “Faz Escuro Mas Eu Canto”, naqueles breves dias em Rio Branco, passeando ao meu lado por suas ruas mal calçadas, visitando amigos, entre os quais um ex-governador do Acre nascido em Pau dos Ferros, em cuja casa, numa reunião somente de homens, em meio ao ópio da conversa, saboreamos um peixe especialmente assado por Rafael Ruela, um boliviano exímio nessa arte, sob as vistas de um alto funcionário do Banco Mundial admirado da nossa frugalidade.
Lembro-me ainda da visita que fizemos ao grande escritor e artista plástico Hélio Melo, uma dessas divindades tutelares da cidade, como um dos reis sem terra da poesia, vivendo em sua pobreza digna à margem do Rio Acre, autor de uma obra extraordinária que contém e resume a essência da terra e da alma de um povo heróico e imprevidente. Ali, naquela casa humilde de um vigia noturno aposentado, a profusão do talento em significativas formas de arte. E, no outro dia, melhor numa tarde, fomos Thiago e eu passear no velho Segundo Distrito, creio que onde a cidade nasceu, à margem direita do rio que fertiliza a capital do Acre, percorrendo o caminho tantas vezes percorrido por Juvenal Antunes, que morara ali há uns cinqüenta anos, no velho e tradicional Hotel Madrid, já fechado para o público, mas ainda sobreexistindo em sua preciosa arquitetura de época.
Ao partir, levou Thiago um pouco da nossa alegria de viver, tamanho o vazio que de repente se fez sentir à nossa volta, sem a sua presença. Dias depois, já em Barreirinha, ele escreveu pedindo-me que lhe enviasse a sua “roupa das festas” que esquecera no armário, a única que possuía, uma parelha de calça e túnica brancas, de linho, ricamente bordada a mão, que lhe fora presenteada por mulheres anônimas da distante aldeia de Soletiname, ao tempo de sua amizade com o padre, poeta e herói gualtemalteco, fundador de uma comunidade de pobres, Ernesto Cardenal, antes dele receber o “Prêmio Nobel de Literatura”. Fui ao quarto e lá estava a roupa do poeta, bem passada e perfumada. Certamente pelas mãos de Aparecida.
O poeta retribuiu enviando-me logo em seguida o poema que escrevera para a cidade de Rio Branco, no qual me cita entre os seus amigos acreanos, entre os quais o Doutor Albérico Batista da Silva. Um extenso poema que seria prosificado e incluído em parte nas memórias de Thiago de Mello, publicadas na primeira metade desta década e, rapidamente, esgotadas. Se pudesse descrevê-lo em uma única frase, diria que Thiago de Mello é a generosidade mesma em pessoa.
Franklin Jorge
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Em minha adolescência inquieta e fatigada, sua poesia - que se confundia com a sua própria vida, pelo que sabíamos maravilhosamente repleta de aventuras -, me fez mergulhar em dimensões estranhas e magníficas do mito e do sonho, levando-me a pensar que também poderia me opor às injustiças e defender humilhados e ofendidos, escrevendo altruisticamente em versos.
Nunca pensei, porém, que algum dia nos conheceríamos e nos tornaríamos, se ouso declarar sem presunção, amigos, pois ninguém mais vocacionado para o exercício da amizade do que esse grande patriarca das letras amazônicas. Mais ainda, que eu viria a escrever numa mesa de peroba rosa, especialmente desenhada por Thiago de Mello, como um presente de aniversário dos meus quarenta anos...
Estávamos ambos, naquele remoto ano de 1992, em Rio Branco. Thiago, de passagem, para participar da entrega do “Prêmio Juvenal Antunes” e participar da inauguração de uma escola municipal em homenagem ao poeta do Ceará-Mirim, meu conterrâneo, recentemente achacado pelas mãos globais de Glória Perez num seriado feito com o visível propósito de faturar e colocar em evidência o nome do seu pai, que, de outra forma, continuaria um autor anônimo... Eu, trabalhando, mais precisamente dirigindo o “Complexo O Rio Branco de Comunicação”, onde empreendera o ambicioso projeto de, através de um novo direcionamento do jornalismo impresso e televisivo, “redescobrir o Acre... para os acreanos”. Foi o que fizemos, com um tal êxito, que muitos daqueles bairristas passaram a pensar que eu nascera também no Acre.
Um gigante, no físico, Thiago chama a si mesmo de “Caboclo”, o Caboclo Thiago, como outros amazônidas, de pele “cor de cuia” e cabelo encrespado já ficando inteiramente grisalho, um extraordinário ser humano, inteiramente despojado de todo o desejo de posse, pois o seu reino não é deste mundo...
Muito conversador – pois a conversação, como já tive a oportunidade de dizer noutra ocasião, parece-me ser a síntese de seus variados dons --, assim me lembro do autor de “Faz Escuro Mas Eu Canto”, naqueles breves dias em Rio Branco, passeando ao meu lado por suas ruas mal calçadas, visitando amigos, entre os quais um ex-governador do Acre nascido em Pau dos Ferros, em cuja casa, numa reunião somente de homens, em meio ao ópio da conversa, saboreamos um peixe especialmente assado por Rafael Ruela, um boliviano exímio nessa arte, sob as vistas de um alto funcionário do Banco Mundial admirado da nossa frugalidade.
Lembro-me ainda da visita que fizemos ao grande escritor e artista plástico Hélio Melo, uma dessas divindades tutelares da cidade, como um dos reis sem terra da poesia, vivendo em sua pobreza digna à margem do Rio Acre, autor de uma obra extraordinária que contém e resume a essência da terra e da alma de um povo heróico e imprevidente. Ali, naquela casa humilde de um vigia noturno aposentado, a profusão do talento em significativas formas de arte. E, no outro dia, melhor numa tarde, fomos Thiago e eu passear no velho Segundo Distrito, creio que onde a cidade nasceu, à margem direita do rio que fertiliza a capital do Acre, percorrendo o caminho tantas vezes percorrido por Juvenal Antunes, que morara ali há uns cinqüenta anos, no velho e tradicional Hotel Madrid, já fechado para o público, mas ainda sobreexistindo em sua preciosa arquitetura de época.
Ao partir, levou Thiago um pouco da nossa alegria de viver, tamanho o vazio que de repente se fez sentir à nossa volta, sem a sua presença. Dias depois, já em Barreirinha, ele escreveu pedindo-me que lhe enviasse a sua “roupa das festas” que esquecera no armário, a única que possuía, uma parelha de calça e túnica brancas, de linho, ricamente bordada a mão, que lhe fora presenteada por mulheres anônimas da distante aldeia de Soletiname, ao tempo de sua amizade com o padre, poeta e herói gualtemalteco, fundador de uma comunidade de pobres, Ernesto Cardenal, antes dele receber o “Prêmio Nobel de Literatura”. Fui ao quarto e lá estava a roupa do poeta, bem passada e perfumada. Certamente pelas mãos de Aparecida.
O poeta retribuiu enviando-me logo em seguida o poema que escrevera para a cidade de Rio Branco, no qual me cita entre os seus amigos acreanos, entre os quais o Doutor Albérico Batista da Silva. Um extenso poema que seria prosificado e incluído em parte nas memórias de Thiago de Mello, publicadas na primeira metade desta década e, rapidamente, esgotadas. Se pudesse descrevê-lo em uma única frase, diria que Thiago de Mello é a generosidade mesma em pessoa.
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